Bia Monteiro

Bia Monteiro 

Desterrar (2019 - ...)


“somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.” 

Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil 


O título da série de fotoperformances de Bia Monteiro, Desterrar, nasce da célebre passagem de abertura de um dos mais importantes textos da tradição interpretativa da cultura brasileira, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, cuja primeira edição é de 1936. O sociólogo e historiador brasileiro afirma, logo no parágrafo inicial do seu livro clássico, que considera como “o fato dominante e mais rico de consequências para a sociedade brasileira” a tentativa da cultura europeia de se implantar em nossas terras, mesmo tendo o nosso território “condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar”. Há um descompasso, segundo o sociólogo, entre a intenção do colonizador europeu e as condições naturais que ele tem que enfrentar nesse novo território. Esse conflito teria produzido como efeito o desterro em sua própria terra a que são condenados os brasileiros, ainda hoje. Desterrar fala, portanto, de um desencontro entre o homem europeu e a paisagem tropical. Partindo desse diagnóstico, Bia Monteiro vai buscar em outra referência fundamental da cultura brasileira, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, um contraponto para o impasse apontado por Sérgio Buarque de Holanda. Publicado originalmente no Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, em 18 de março de 1924, o manifesto de Oswald é uma resposta avant la lettre ao conflito descrito pelo sociólogo brasileiro. A referência ao Pau-Brasil não é casual. Trata-se de uma árvore típica da Mata Atlântica brasileira cuja exploração foi a primeira atividade econômica exercida pelos portugueses em nosso país durante o século XVI. O Pau-Brasil seria, assim, ao mesmo tempo, signo da nossa natureza autóctone e do processo colonial explorador a que essa mesma natureza e os humanos que nela viviam foram submetidos no processo de constituição da nossa nação. Ao propor o Pau-Brasil como insígnia da nossa poesia, Oswald pensa em partir da nossa paisagem natural para oferecer um novo paradigma para a nossa cultura. Bia Monteiro se apropria, na construção de Desterrar, de algumas frases do manifesto modernista e as escreve à mão, com carvão vegetal, na parede do espaço expositivo, logo abaixo das imagens expostas. Esse movimento que questiona o olhar europeu como medida avaliadora da nossa paisagem, propondo em seu lugar um outro olhar, anticolonial, decolonial ou contracolonial, está presente em vários trabalhos anteriores e posteriores de Bia Monteiro, que, em alguns casos, insere seu próprio corpo (ou parte dele) na paisagem natural brasileira, propondo um novo modo de medi-la e avaliá-la. Em Desterrar, no entanto, Bia sai de cena para dar lugar a outras mulheres que aparecem no confronto com essa paisagem. Elas são convidadas pela artista a levantar tecidos feitos de algodão orgânico, tingidos com pigmentos naturais de cúrcuma, erva-mate, café e, como não poderia deixar de ser, pau-brasil. Elas aparecem na paisagem dentro do mesmo desterro descrito por Sérgio Buarque de Holanda, mas, ao mesmo tempo, levantando uma bandeira mais próxima do manifesto de Oswald de Andrade. As mulheres que vemos nas imagens produzidas por Bia se encontram em ambientes rurais de diferentes regiões brasileiras (em Alto Paraíso, no estado de Goiás; na Chapada Diamantina, no estado da Bahia; e em Queluz, no estado de São Paulo) e fazem o gesto que é o centro essencial do trabalho: com as próprias mãos, seguram no alto o tecido de algodão, como se levantassem uma faixa ou uma bandeira. O desterro aqui toca no conflito colonial com a paisagem, que está sempre ao fundo das imagens, mas também na questão agrária que torna muitas dessas mulheres fotografadas trabalhadoras rurais semterra. Não por acaso, algumas dessas imagens foram produzidas em comunidades quilombolas, fundadas séculos atrás pelos escravizados de origem africana. Desterrar, assim, fala não só do colonizador europeu que aqui se instalou no conflito com a paisagem dos trópicos, mas também das populações africanas que aqui chegaram e que, como os europeus, também tiveram que descobrir uma nova paisagem natural, em uma situação muito mais difícil, no entanto, por terem aqui chegado na condição, não de colonizadores, mas de escravizados. Em Desterrar, o gesto de levantar com as mãos um tecido tingido, como se estivesse levantando uma bandeira, se mostra como o elemento mais essencial à construção da imagem. É por causa desse gesto que as imagens de Bia Monteiro ganham uma dimensão política fundamental. Não só pelas mulheres retratadas, mas pelo próprio gesto que elas inserem na paisagem. Como nos lembra o filósofo italiano Giorgio Agamben, a política não é propriamente o campo da ação, mas a esfera dos gestos. É por ter o seu centro em um gesto que essas imagens são políticas. Mas o trabalho toca não só nas questões coloniais e naquelas relativas à escravidão, mas nos dá também um olhar feminista para esses processos históricos. Trazer as mulheres para o primeiro plano de uma paisagem rural faz com que repensemos esse universo, do qual nos chegam, em geral, imagens masculinas, de homens trabalhando na lavoura. Há, da parte da artista, na construção do trabalho, todo um conjunto de decisões prévio à produção da imagem: a escolha da paisagem, do local preciso onde a fotografia será realizada, a escolha da cor do tecido que compõe com as cores da paisagem, a posição que cada uma das mulheres terá em cada foto: todos esses elementos são fundamentais para construir a força das imagens, que, em última instância, visa (e consegue) nos sensibilizar para a beleza da existência e da causa dessas mulheres. Mas há um ponto central nas imagens em que Bia deixa uma margem de acaso a ser decidida pelas próprias mulheres fotografadas. É essa margem que produz uma certa diversidade nas imagens produzidas. Há um primeiro grupo de imagens em que as mulheres levantam os tecidos de modo que toda a parte superior do corpo delas fica escondido e o resultado é uma espécie de esfinge ou sereia rural, metade mulher, metade bandeira. Quando isso acontece, o retângulo colorido do tecido aparece como que flutuando no fundo de cores da paisagem, lembrando outros trabalhos da artista em que formas geométricas coloridas são introduzidas na natureza. Nessas imagens, as sereias ou esfinges rurais também assumem o aspecto intrigante de bandeiras com pernas. Há um segundo grupo de imagens em que as luz do sol, incidindo por trás das mulheres, acaba projetando suas silhuetas sobre os tecidos, que ganham assim uma dimensão universal: o desenho da cabeça e dos braços levantados evocando a luta revolucionária dessas mulheres. À pergunta “que bandeira levantam essas mulheres?” essas imagens talvez respondam: a bandeira de si mesmas! Mas é talvez o terceiro grupo de imagens aquele que produz o efeito mais intensamente político e tocante. São aquelas em que, ao levantar o tecido, algumas das mulheres não escondem totalmente suas cabeças, deixando entrever parte delas e, em alguns casos, parte dos seus olhos. Ao fazer o gesto de levantar a bandeira, essas mulheres não são apenas objeto do olhar da artista que as fotografa, mas sujeitos que também a olham, como que querendo assistir ao processo de constituição das imagens de si mesmas. Nessas imagens, o olhar das mulheres é parte constitutiva do seu gesto e são um contraponto intenso ao olhar da artista. Com Desterrar, podemos dizer que, às palavras de Sérgio Buarque de Holanda e Oswald de Andrade, do intelectual e do poeta, Bia Monteiro, a artista, responde, através dessas mulheres brasileiras, com imagens e gestos. E olhares. 


Texto por Cláudio Oliveira

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